VANESSA DA SILVA GAMBACORTA GRIZZI DE CAMPOS
Artigo elaborado baseado em partes do Trabalho de Conclusão de Curso, Autora do artigo: Profa. Larissa A. Bachir – CETN
Para o chinês, o conjunto de funções psíquicas e espirituais corresponde à definição geral do Shen (Espírito ou Consciência). O Nei Jing cita: “O que é o Espírito? O Espírito não pode ser escutado com os ouvidos. Os olhos devem estar brilhantes de percepção e o coração deve estar aberto e atento, e então o espírito é subitamente revelado através da nossa própria consciência. Não pode ser expresso pela boca; só o coração pode expressar tudo aquilo que pode ser olhado. Se prestarmos muita atenção, podemos conhecê-lo subitamente, mas também podemos com a mesma rapidez perder esse conhecimento. Mas o Espírito torna-se claro para o homem, como se o vento tivesse afastado as nuvens”.
Podemos entender o Espírito então como o princípio de animação, ou princípio vital do homem. É uma qualidade, por isso não pode ser medido. Pode-se apenas percebê-lo, como uma emanação que provém do todo. Mas implica na existência material, que é diferente da idéia ocidental de espírito. Segundo Ross (1994), o Shen é resultado da interação entre o Shen pré-natal, herdado dos pais, e o Shen pós-natal, resultado da integração entre o Jing (Energia Ancestral) e o Qi.
Assim o Jing, o Qi e o Shen formam o San Bao (ou os Três Tesouros): três conceitos essenciais nos quais se baseia a explicação da vida. Percebe-se assim que, na tradição chinesa, o Shen é uma parte integral do corpo, não um aspecto separado dele. Maciocia (1996) complementa, afirmando que “o Shen é uma das substâncias vitais do corpo. É o mais sutil e não substacial tipo de Qi”. Ele também coloca, baseado em livros antigos, que o Shen de um indivíduo vem das energias pré-natais dos pais, e após o nascimento vai depender da nutrição proveniente da energia pós-natal. Assim, o Shen desenha sua base e obtém sua nutrição a partir da Essência (Jing) Pré-natal armazenada nos Rins e da Essência (Jing) Pós-natal produzida pelos Pulmões, Estômago e Baço-Pâncreas. Daí os Três Tesouros:
Shen – Coração;
Qi – Pulmões, Estômago e Baço-Pâncreas;
Jing – Rins.
Estes Três Tesouros representam três diferentes estados de condensação do Qi: o Jing é a mais densa, o Qi o mais rarefeito e o Shen o mais sutil e não substancial. A atividade do Shen conta com o Jing e o Qi como suas bases fundamentais. Entretanto, em via inversa, o estado do Shen também pode afetar o Qi e o Jing. Segundo o Nei Jing “quando o Espírito está em paz, o sofrimento não é mais que um minuto” e estabelece que para tornar o tratamento eficaz é necessário começar por curar o Espírito. Por quê? Porque é através dele que se percebe a unificação e o funcionamento harmônico de todas as capacidades adaptativas, de todos os Zang-Fu. O Shen é a consciência organizadora, que se expressa no conjunto das funções do organismo, permitindo-lhe comunicar e adaptar-se permanentemente ao que lhe cerca.
O Shen possibilita ao corpo as qualidades de percepção, consciência e vitalidade. Quando há organização o Espírito está em paz, quando há desorganização há “loucura”. O Shen se expressa através do órgãos e vísceras sob cinco formas, também chamadas de “Alma dos Zang-Fu”:
1) O Shen, ou a Mente propriamente dita, em relação com o Xin, coordena o psiquismo e configura (como um organizador) o ser humano. É responsável pela coerência da personalidade e se expressa nos aspectos mais elevados da inteligência, particularmente a capacidade de manejar as situações e de adaptar-se o melhor possível ao meio que o rodeia, tomando partido das energias exteriores e interiores do organismo. Quando funciona corretamente, a mente está clara, o coração é sereno e o discurso é lógico. Uma condição energética de deficiência desse sistema provoca um estado depressivo, timidez, incapacidade de ter uma percepção justa das situações, originando uma tendência a queixar-se sem cessar e, em casos graves, a uma desestruturação da personalidade. Quando o Shen está perturbado por uma condição de excesso, há euforia, incoerência, confusão.
2) O Hun, em relação com o Gan, gera os projetos e proporciona toda sua riqueza ao inconsciente (sonhos, desejos…). É uma força dinâmica que desencadeia os
impulsos necessários para empreender uma ação. Como controla a imaginação, desempenha um papel essencial em todo ato de criação, permitindo a elaboração de uma estratégia. Uma condição energética de deficiência deste sistema reduz os impulsos, os desejos e o entusiasmo e ocasiona um empobrecimento da imaginação e uma incapacidade para conceber planos de ação futuros. E quando o Hun está perturbado por uma condição de excesso, o sono é agitado, tem-se sonhos violentos ou pesadelos, os projetos são excessivos e incoerentes, a imaginação é deslocada da realidade e as pulsões incontroláveis.
3) O Po, em relação com o Fei, é a parte da consciência mais corporal, que determina as ações e reações do organismo destinadas a permitir escolher, sem intervenção da mente, o que é útil para a sua sobrevivência e a recusar o que é prejudicial. Se expressa nos instintos primários (sucção, deglutição), e mais particularmente no instinto de conservação, vinculado ao apego inconsciente ao corpo. Está simbolicamente muito próximo do Xue, como o Hun está para o Qi. Sua deficiência energética origina uma perda do instinto de conservação, vulnerabilidade e desinteresse. Quando o Po está perturbado por um excesso, se observa um estado obsessivo por segurança unido a um medo do futuro.
4) O Yi, em relação com o Pi, é a parte da nossa mente responsável pelo registro das experiências, da sua classificação, conservação, compilação e reformulação. Diretamente unido à memória, gera a capacidade de integrar e de reproduzir informações, já que essas duas fases são complementares, especialmente na aprendizagem. Quando funciona o Yi, se compreende facilmente, se retém com comodidade, se concebe bem e se enuncia com clareza. Em caso de deficiência energética neste sistema, a memória é débil e a conceituação confusa. Quando o Yi se acha perturbado por excesso, a memória se mostra obsessiva nos pensamentos, é impossível desapegar-se das experiências do passado e as experiências e as idéias fixas estorvam a mente.
5) O Zhi, em relação com os Shen, corresponde à vontade, à determinação, à capacidade para realizar uma intenção. É indispensável para levar a cabo uma ação, sem deixar-se desviar pelos obstáculos. Comporta autoridade e afirmação do eu. Sua deficiência energética produz medo, um caráter indeciso e mutável, desânimo e submissão à adversidade. Quando o Zhi se expressa demasiadamente, com excesso energético, se observa temeridade, tirania, autoritarismo e obstinação. Assim, podemos perceber que o Xin é o Imperador, é nele que reside o Espírito pois ele controla o Xue (Sangue) e o Xue Mai (Vasos Sanguíneos), considerados a principal base material das atividades mentais do corpo humano, por isso ele tem uma importância central na administração das atividades mentais. Sob o seu comando os outros órgãos e vísceras administram suas respectivas atividades. Mas somente pela organização do todo se tem o Espírito em paz, já que a desorganização significa a inadaptabilidade. Maciocia (1996), baseado no Nei Jing, afirma que o conceito de Shen por um lado pode significar a atividade do pensamento, consciência, “insight” e memória; todas dependentes do Xin; por outro indica o complexo de todos os cinco aspectos mentais e espirituais do ser humano, isto é, a união da Mente propriamente dita, a Alma Etérea, a Alma Corpórea, a Inteligência e a Força de Vontade.
Assim, ele diferencia, para efeitos de conceituação, a “Mente” propriamente dita do “Espírito” (ambos denominados Shen em chinês), sendo a primeira semelhante ao que chamamos de mente no pensamento ocidental e correspondente à Alma do Xin, e a segunda a essa faculdade resultante da soma da Alma de todos os Zang: Shen, Hun, Po, Yi e, Zhi reunidos, determinando assim os Cinco Órgãos Yin como sendo as bases fisiológicas do Espírito. Este autor comenta mais algumas curiosidades sobre A Alma Etérea (Hun) e a Alma Corpórea (Po). Ele afirma que “de acordo com as antigas crenças chinesas, a Alma Etérea entra no corpo logo após o nascimento. De natureza etérea (sublime, celestial), após a morte ela sobrevive ao corpo e flui de volta para o Céu (Tian). (…) A Alma Etérea pode ser descrita como aquela parte da Alma que na morte deixa o corpo, carregando com ela uma aparência de forma física”, ou seja, “o conceito de Alma Etérea é intimamente relacionado às crenças chinesas antigas, no tocante aos espíritos, almas e demônios. De acordo com tais crenças, os espíritos são criaturas do ‘tipo-espírito’ que preservam a aparência física e vagueiam no mundo dos espíritos. Alguns são bons, outros são maus. Nos tempos antigos (período de 476 – 221 a.C.) esses espíritos eram considerados como a causa principal de doenças”.
Prossegue colocando que a natureza e as funções da Alma Etérea são principalmente:
influenciar o sono e os sonhos, incluindo aí as fantasias (o “sonhar acordado”); proporcionar equilíbrio emocional (evitar os extremos); relacionar-se com a coragem e a covardia; com os olhos e a visão; e auxiliar a Mente nas atividades mentais (pensamento racional, intuição, inspiração, autodiscernimento e introspecção).
“Se por um lado a Mente e a Alma Etérea são intimamente interligadas, há algumas diferenças entre as duas. A diferença principal é que a Alma Etérea pertence ao mundo da Imagem (isto é, uma existência não substancial), para o qual ela retorna após a morte; e a Mente, por outro lado, é a mente individual do ser humano, que morre com a pessoa”. No entanto, é importante que a Mente assuma uma posição integradora com a Alma Etérea, sob o risco de ser inundada pelos símbolos, sonhos, imagens e idéias e a conseqüente obstrução da mente, o que pode resultar, em casos severos, no que ocidentalmente denominamos de psicoses.
A Alma Etérea é Yang e se move, “é o elo com a Mente Universal”, “é como o fogo: quanto mais coisas se acrescentam, mais ele queima”. Com relação à Alma Corpórea (Po), Maciocia (1996) afirma que ela está intimamente relacionada com o Jing, no sentido que traz o Jing para tomar parte em todos os processos fisiológicos, “enraizando-o” no corpo. A Alma Corpórea é a responsável pelo primeiro processo fisiológico após o nascimento, e durante a vida nos proporciona a capacidade de sensação, sentimento, audição e visão. Relaciona-se à nossa vida como indivíduos, protegendo-nos de influencias psíquicas externas, ao contrário da Alma Etérea que se refere à nossa relação com as outras pessoas. Na morte, a Alma Corpórea se dissolve e retorna para a Terra, pois é de natureza Yin e pertence à esfera do corpo.
Ampliando interpretação dos autores acima, segundo os quais o Shen seria o reflexo da dinâmica e equilíbrio da Alma dos Zang-Fu, Nogueira Perez (1999) nos apresenta uma outra interpretação bastante interessante deste conceito: ele diz que “o ser humano é o único ser vivente que tem a capacidade de síntese e análise das influências que o cercam, dando uma resposta racional ao estímulo, podendo neutralizar ou modificar a respectiva resposta em função da sua própria conveniência. Este princípio se mostra de acordo com certas definições chinesas, que falam do homem como um ‘ente energético voluntarioso’. Quer dizer, existirá uma força, uma manifestação energética, capaz de adaptar (modificando ou neutralizando) os sentimentos e as emoções de acordo com o interesse e conveniência da própria pessoa (podendo inclusive, modificar os potenciais energéticos e a sua ação fisiológica)”. Essa força, esse potencial transformador de energia, é o que chama de Shen.
A partir dessas colocações temos claramente a integração dos aspectos físicos aos psíquicos e podemos perceber que a função orgânica e os elementos que constituem o plano psíquico formam um conjunto indissolúvel, formam o Tao vital humano.
Ou seja, o Shen depende de que as funções dos Zang-Fu estejam em normalidade. Na vida humana, o corpo não pode funcionar sem o impulso permanente do Espírito e este, por sua vez, só pode ser considerado no contexto do funcionamento corporal. Essa teoria essencial faz com que a Medicina Chinesa não possa se fundamentada sobre uma concepção radicalmente materialista, apesar do discurso que se encontra em certas obras publicadas sob o regime comunista chinês. Nem tampouco pode se satisfazer com uma representação exclusivamente espiritual sob a qual, por vezes, se tem apoiado os ocidentais, em sua busca por uma mística mágica. A medicina chinesa é fruto de uma filosofia naturalista, na qual as atividades mentais, emocionais, fisiológicas ou sociais são expressões múltiplas de um mesmo princípio vital.